Direção: Richard Fleischer
Roteiro: Leslie Bricusse
Elenco principal: Rex Harrison, Samantha Eggar, Anthony Newley, Richard Attenborough
Mais de três décadas antes das caras e bocas de Eddie Murphy, a 20th Century Fox levava os contos originais de Hugh Lofting para as telas de cinema em um verdadeiro espetáculo técnico rodado em 70 milímetros. “O Fantástico Doutor Dolittle”, superprodução musical de US$ 18 milhões (uma enormidade para a época), propicia ao espectador um esmero audiovisual incrível: direção de arte, figurinos, cenografia, fotografia e efeitos especiais são intensamente explorados pelo roteiro em tomadas panorâmicas belíssimas, coroadas por belas paisagens de campos ingleses, florestas tropicais e até mesmo do alto-mar.
Rex Harrison, que participou de clássicos como “Cleópatra (Cleopatra, 1963)” e “Minha Bela Dama (My Fair Lady, 1964)”, interpreta o personagem John Dolittle. Após experiências desagradáveis com sua irmã e vários de seus pacientes, o médico desenvolve uma profunda antipatia pela raça humana, decidindo aplicar seu ofício exclusivamente aos animais. Sua proximidade com os bichos é tão intensa que, com a ajuda de uma papagaio superdotada capaz de falar a língua dos humanos, ele aprende centenas de línguas e passa a conseguir conversar com seus “pacientes”. Seu maior objetivo é encontrar–e conversar–com o caracol cor-de-rosa gigante, um animal raríssimo e poucas vezes observado.
Evidentemente, a maior parte dos habitantes da pequena cidade inglesa de Puddle by-on-the-Marshnão acreditam na habilidade ímpar do “médico de animais”, como ele gostava de ser chamado. A exceção fica por conta de seu amigo pessoal Matthew Mugg (interpretado por Anthony Newley), que apresenta-o pequeno Tommy Stubbins (William Dix) depois que o menino esteve atrás de alguém que pudesse cuidar de um pato machucado. Fecha o elenco principal a jovem, bela e determinada Emma Fairfax (Samantha Eggar) que, depois de um primeiro contato desastroso, acaba se apaixonando pelo doutor Dolittle
A 20th Century Fox foi um dos grandes estúdios que mais resistiu às mudanças provocadas pela crise que vinha assolando a atividade desde o início da década de 1960 (leia mais aqui). Em 1967, Darryl F. Zanuck nem cogitava sair do comando da empresa e a filosofia de produção continuava a mesma das décadas anteriores, mesmo após sucessivos fracassos de público. “O Fantástico Doutor Dolittle” carrega consigo todos os elementos desse sistema clássico de produção: roteiro, decupagem e fotografia seguem o padrão já consagrado e nos remetem a outros grandes filmes do próprio estúdio, como “A Noviça Rebelde”(The Sound Of Music, 1965). Números musicais saltam da tela e a grandiosidade impressiona em diversos momentos, como: a imponência da cidade cenográfica, a elevada quantidade e variedade de animais apresentados ao longo do filme e a profusão de figurante sem diversas sequências.
A trilha sonora é belíssima. O som, irretocável. Os efeitos visuais, um capítulo à parte. L.B. Abbott, que já tinha sido indicado ao Oscar em 1959 por “Viagem Ao Centro Da Terra”(Journey to the Center of the Earth, 1959), consegue construir cenas que podem parecer banais pela profusão digital da atualidade, mas são simplesmente fantásticas. A sequência em que uma baleia empurra a ilha na qual o doutor espera encontrar seu caracol, em meio ao Oceano Atlântico, é a maior prova disso.
Mesmo com todos esses atributos contando a favor, fica a sensação que não existe mais o brilho de outrora. O roteiro é bastante frágil, tanto no desenvolvimento dos personagens e suas relações quanto na evolução da história. O personagem do pequeno Tommy, por exemplo, jamais se justifica por completo. Dá a impressão de que era apenas uma necessidade do estúdio ter um astro mirim nas telas(o que sempre foi um poderoso alavancador de audiências). O romance entre John Dolittle e Emma Fairfax não convence, já que a relação entre eles não é devidamente desenvolvida a ponto de justificar algumas sequências cruciais entre os dois. A direção é apenas correta, e a passagem que culmina com o julgamento do médico como doente mental chega a ser constrangedora por sugerir um affair seu com uma foca já comprometida.
A maioria das canções e dos números musicais é apenas mediano, passando um pouco distante dos melhores exemplos do estúdio nessa área. O destaque fica apenas para “After Today”, na coreografia mais inspirada de todo o filme; e nas ótimas canções “I’ve Never Seen Anything Like It”(curiosamente interpretada por Richard Attenborough), a poderosa “Like Animals”, e a vencedora do Oscar “Talk To The Animals”. Nas restantes, fica a impressão deque falta vitalidade.
Tecnicamente impecável, o filme escorrega em diversos pontos vitais de construção da narrativa, o que acaba prejudicando-o como um todo. De certa forma, o filme deixa vazar um certo anacronismo se levarmos em conta o contexto geral de produção cinematográfica daquele ano. Dez anos antes, este filme certamente pareceria muito mais bem “encaixado ”temporalmente. Mesmo assim trata-se de uma fábula deliciosa e deslumbrante, realizada com extrema competência técnica e artística e que merece ser assistido sem pestanejar . Esqueça a besteira da com Eddie Murphy, que sequer tem a dignidade de ser um remake deste original.
O filme pode ser encontrado facilmente em DVD no Brasil e só peca por não oferecer legendas durante as canções, o que dificulta bastante a compreensão de alguns trechos do filme para aqueles que tem dificuldades com o inglês.